domingo, 30 de dezembro de 2012



Vestido de festa

Para dona Rita, colecionadora e exímia estilista de roupas para bonecas

Loren, Margot, Marjorie, eram quase- pessoas na visão de dona Cidinha, que acabara de costurar mais uma peça para uma de suas quase 150 bonecas. Todas, impecavelmente vestidas, frequentadoras dos mais lindos bailes imaginários dos sonhos, coisas de menina antiga, criada por trás da máquina de costura da mãe e na sombra das vizinhas carpideiras, que solicitavam roupas brancas para chorar seus defuntos confeccionadas naquela senhora Singer preta, austera, de pedais rebuscados cheirando a mofo e ao mesmo tempo, com ares de vida eterna.

A mãe  era uma boa costureira sem dúvida, mas nunca levou o ofício a sério. Sua principal atividade era mesmo a de controlar as bebedeiras do marido, boêmio inveterado, avesso à vida doméstica e pai ausente. Frequentemente, assistia  a mãe  ser vítima das provocações desse que escolheu para ser pai dos seus quatro filhos, quando ele dizia que não havia nascido para criar família, que tudo era culpa "dela", que "agora que quis, que aguentasse". Enquanto ela, a mãe, permanecia ali, caladinha, na sua lividez de menina, apenas pensando em mais uma roupa pra lavar, comida por fazer ou na sua melhor fantasia: costurar, secretamente, as roupinhas para sua coleção de damas da noite.  

Mergulhada nesse universo particular das bobinas, agulhas e aviamentos, a rotina da mãe incluia ainda ver frequentemente o marido entrar em casa com um terno manchado de batom o que, em vez de provocar sua ira, a afastava mais ainda daquele delito conjugal fazendo-a mergulhar mais fundo em sua fantasia. Ali estavam elas: Gracie, Gretha, Brenda, todas representando o seu melhor papel, o sonho de mulher fina que nunca pode desempenhar por conta de uma infância pobre. Quem disse que ser pobre significa não ter fineza?  Dona Cidinha sempre viu na mãe uma diva. Uma autêntica conhecedora dos gestos mais nobres e das roupas mais elegantes da sua época.

 Não sabia de onde saía aquele conhecimento se nem dinheiro para comprar os últimos números da revista Manequim ela tinha. Às vezes suspeitava que essa vocação vinha de vidas passadas, embora, católica convicta, não assumisse em público esse tipo de desconfiança. 

Um dia ocorreu o inesperado. A mãe, ainda jovem, sofreu um infarto, daqueles fulminantes, sem haver tempo para socorro imediato ainda mais naqueles tempos bicudos onde ambulância era quase luxo no vilarejo onde moravam.  Morreu ali mesmo, sem choro nem vela, caindo por cima daquela que foi a sua fiel companheira durante esse tempo de vida: a velha máquina Singer. Como a primogênita, Cidinha foi obrigada a tomar as primeiras providências: comprar o caixão, fazer o enterro da mãe, acalmar os irmãos e, ainda – que horror – providenciar o vestido do velório. Mamãe era fina, não podia ser enterrada de qualquer modo. 

Lembrou que a chave do seu armário, aquele que ela não deixava ninguém chegar perto e onde deveriam estar suas melhores roupas, vivia dentro de um velho prato de cristal, que só ela sabia onde estava sem que a mãe percebesse. Ao achar a chave mágica, correu para o tal armário, intimamente, vivenciando uma ponta de felicidade por finalmente saber o que se escondia ali.

Foi quando tomou o choque: ali estavam elas, as 150 preciosidades, todas bem vestidas com cetins, véus,  plumas, sedas e brilho, muito brilho.  Um contraste com a filha mais velha que dispunha apenas de duas bonecas puídas, que dividia com a irmã. Do alto de seus 12 anos, Cidinha não sabia se procurava o vestido para a mãe ou se pegava tudo para si, para só brincar, finalmente, realizar o seu sonho sem ninguém para interferir. Como a mãe escondeu tanto tempo aquele tesouro?

Teve um mistura de raiva e pena e quase desistiu de procurar o vestido elegante para a mãe, optando por sepultá-la com aquele mesmo, que ela usava na diária. Egoisticamente, foi pegando uma a uma todas as bonecas, quase em transe-  enquanto a mãe jazia, rígida, em cima da máquina -  acomodando-as em uma caixa de papelão embaixo de sua cama. A irmã não podia saber. Ninguém, ninguém podia saber. Era segredo dela e a da mãe, que já não podia mais falar. 

Depois de guardar aquelas jóias cuidadosamente, lembrou de buscar o vestido para a mãe, encontrando apenas um: o que ela havia feito com esmero para o batizado do filho mais novo, o queridinho do pai, que ganhou festa e pompa nesse dia para prejuízo dos mais velhos. Ali estava ele, amarelado, cheio de rendas, caprichosamente passado e ensacado o  ´único que seu pai dispensou dinheiro com tecido e acessórios para a "esposa não fazer feio na festa". Cínico, o pai.

Este, ao entrar de surpresa e saber da morte da esposa, deu meia volta ainda na sala pegando o menino menor, e nunca mais voltou. Cidinha cuidou de tudo e ali mesmo se despediu da infância- embora, não soubesse exatamente do que isso se tratava. Tinha, agora, uma imensa responsabilidade para tocar assumindo o papel da mãe. Virou costureira famosa. Foi contratada pelos nomes da alta costura  nacional  e fez uma pequena fortuna. Marido não quis. Preferiu dispensar todos os seus cuidados à família e às suas  pequenas amigas, guardiãs daquele segredo: Greta, Brenda, Loren.... eram quase-pessoas para ela.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Com o corpo

Este corpo é meu e ele me basta
para fazer dele o que bem me interessa desesperado
ou mesmo assim, sem pressa ele me locomovee se move à beça
pulando, correndo, gozando, dançando, nadando, fodendo
este corpo me basta
pelo pouco que entendo me basta
para andar a esmo, para deitar na areia, para rolar na cama, para acompanhar enterro
é meu e basta que seja assim
sem possibilidade de dúvida ou erro

(Autor: Marcos Palhares)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Carne pura


À todas as máquinas de moer corpos e fragilizar mentes...

SP. 2/12/2008

Acredito que só através do corpo existe libertação. É nele que o mundo encontra o combustível necessário para continuar elevando o ritmo da bolsa, o balanço de pagamentos, o superávit na balança comercial. Só o corpo, com todas as suas armas, produz o ritmo que é preciso para deixar as pessoas felizes. Só na sensação do gozo, o mundo se transforma, disfarçado na pele de chefes poderosos, grandes investidores e mercenários torpes.

É pela força do corpo que se geram os altos cargos, abrem-se novas vagas, aumentam-se os salários. Vem, aperta minha mão, me leva pra onde você quiser. Eu já não encontro outro caminho que não seja pela entrega do corpo. Vem, se alimenta, bebe do meu viço com toda a sua gana, gaste sua grana, não deixe nada pra amanhã.

Viva tudo.

É dessa noite que eu vou tirar o meu o sustento e alimentar meus filhos. Minha vida é rotineira: acordo, lavo, passo, mando as crianças pra escola, Nessas horas, há uma pontinha de alma que escapa na luz da manhã e me seduz. Sou criança ainda.

Mas à noite, sou só corpo. Seduzo apenas. Sou impiedosa. Já não creio que haja salvação fora da lógica da carne. O mundo revela-se assim, na sua mais primitiva esfera. È na prisão do corpo que as almas se libertam.

Sinto isso, como uma fonte inesgotável de possibilidades. E no prazer do momento, sorvo do eterno retorno da vida. Quanta bobagem acreditar em algo paralelo.

Existem duas coisas claras em minha vida: a hora de acordar e pegar no batente. E à noite, quando, com o olhar lânguido, entro em quartos que nunca quis dormir. E só.

De dia, sou contida. À noite me transformo na mais perigosa cortesã. Sou máquina.

Mas, vem. Aperta minha mão, me paga uma bebida. Sem esperar nada. Apenas se deleite com a fantasia de me ter um pouco. Meu sim dura pouco mais de um segundo. “Você e esse seu jeito de Capitu”, adorei quando me falou dessa forma. Sim, a eterna sedutora machadiana.

Mas não se arraste por mim. Não vale a pena. Quero ser apenas o veículo que te aproximará do mundo real, onde você experimentará a sensação do toque. O mundo da carne pura, onde a felicidade vem disfaçada de vida, e não há sublimação. Uma esfera onde poucos chegam, mas todos almejam.
Onde há morte, dor e júbilo.

Agora chega. Me pague a conta.
Te desejo boa sorte. O mundo é corpo.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O instante vivido


" Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma.Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não." (Manuel Bandeira)

No casarão, era noite. Lá fora, apenas o latido de um ou outro cachorro de rua e a visão de mais um dia que desaparecia . Dentro da casa, restava a lembrança do passado, tentando resistir ao presente, já que não se podia mais falar em futuro.

Laura acendeu um cigarro, e ficou alguns momentos olhando aqueles escritos antigos na parede da casa, pequenas rachaduras desenhadas pelas mãos invisíveis do tempo. A fumaça lhe trazia imagens que antes não compreendia e que chegavam a incomodar naquela hora pela lucidez repentina com que apareciam.

Há muito ela desistira de aprisionar o momento vivido. Vivia a fruição do instante. Tateava o aqui e agora, mesmo que estes fossem recheados de memórias da infância, risos pela casa, sermões dos pais, passos pelos corredores, e os encontros lancinantes entre os olhos dela e os de José. Ela uma menina, ele homem feito, e entre eles, uma imensa paixão que os sugava por dentro, que ambos sabiam e sentiam, e nada podiam fazer e nem mesmo ousar compreender.
As palavras indizíveis que eles trocaram e que ela sentia dançavam pelo etéreo. Tudo era tão vivo agora. Aquelas sensações, aqueles silêncios, os gritos incorpóreos de um chamando o outro, tudo era ensurdecedor de tão audível.

José a amava. Tinha certeza.

Mas ele já era um morto. E ela, embora viva, sentia-se na posição de quem apenas espera, impotente, diante do absurdo disso tudo. Esperava um dia resgatá-lo, finalmente, porém, não tinha certeza disso. E se atormentava diante da impossibilidade, do inatingível.

Quem sabe, poderiam viver o que não puderam, encontrar-se , tocar-se, na mesma idade, no mesmo instante presente. Pudera ela ultrapassar a barreira da matéria, atravessar a velocidade da luz e embrenhar-se pelos átomos que compõe os corpos até encontrá-lo, em algum ponto do universo, numa galáxia perdida, longe de tudo e de todos, agora só os dois, um encontro marcado.

O tempo era cruel, ela sabia. Mas já não lutava contra ele e conseguia entrar na sua mais obscura intimidade. Compreendia e comungava com as suas vicisssitudes e desencontros e entendia suas sincronias. Nem mesmo a impressão do vir a ser importava. O futuro lhe parecia uma mera impressão. Restava o senhor cronos como ele é, na sua crueza e terror e sua vontade de nada.

E nesse presente havia José, cada vez mais perto, que se entranhava na sua carne e atiçava seus nervos, dando-lhe aflição e medo. Uma angústia que se estendia cada vez que ela fumava um cigarro e observava a fumaça, dançando fantasmagórica na sua vista, forçando-a a refletir. Mera ilusão? Talvez.

Nessa inércia, meio ridícula e apavorante, restava a impressão daquele olhar, que a feria por dentro e que lhe perseguira por toda a vida. Da voz forte de José, chamando-lhe para brincar, dar-lhe balas e doces, dele e seu pai falando de negócios à mesa. Os dois jantando todas as noites, enquanto a mãe preparara o café. E ela, menina, saias curtas, brincando com a boneca, mas de olhos ligados para ver se ele ia embora.

Lembrava-se de seu sorriso interior ao perceber que ele ficaria mais um pouco. Eram sócios, José e seu pai e ninguém jamais imaginaria aquele amor latente, por vezes, já tão maduro e endurecido, entre uma menina e um homem, muito mais velho, separados pela distância do tempo e absolutamente juntos na justeza da alma.

Ela e José jamais se encontrariam. Falo de encontros de corpos. Um dia ele casou e mandou convites. Ela, na sua meninice, pediu pra mãe comprar vestido e sapato, como se fosse a noiva. Sabia que aquele casamento era dela, selariam o enlace no mundo invisível, muito mais real e verdadeiro.

Quando ele subiu ao altar, um arrepio tomou o seu corpo. De mãos dadas com a mãe, ela chorou quando o viu beijar a noiva. E ao cumprimentar-lhe, respirou aliviada ao encontrar novamente os seus olhos.

Afinal eles estavam nela e ela os levaria para sempre, como uma promessa. Eram os mesmos olhos que ela conhecia e que ele via como a redenção de um futuro distante e de um presente proibido.

Anos depois reencontrou-lhe, já velho e doente. A esposa era uma velhinha simpática, que sorriu quando a viu e lembrou-se dela com carinho, quando menina. Ele envergonhou-se ao vê-la assim tão velho, mas seus olhos não conseguiram esconder o que sentiu. E além do tempo, eles tinham agora a barreira da carne, a dela tão fresca....

No entanto, ela o amou mais ainda ao saber que tudo estava perdido. Enquanto ele viveu radiante, seu último instante de vida.

Morreu uma semana depois.

Conversas de amigas

Não, não dá mais pra viver essa relação cheia de caretices, de planos familiares, cheia de coisas por dizer que não valem mais a pena falar, aquela eterna mania de achar que, “não, espera mais um pouco, isso passa, é só uma fase”... chega dessa coisa de viver mentindo pra si mesmo, pra quê e com que sentido isso, valeria a pena ficar trocando essas palavras apenas para preencher o espaço vazio do silêncio, gente, acorda pro mundo, o tesão acabou, os corpos não se comunicam mais, a vida tomou outros rumos, pra que ficar mantendo isso como um tumor que um dia vai estourar e ai, será que vai ter remédio, cura, e se a mente já anda ocupada com outras gentes, outras pessoas, vontade de ter outros corpos, de sair por aí, que coisa insana essa de segurar relação por causa de filho, disso e daquilo outro, ou será melhor trair e trair e coçar, já se sabe.... é só começar, e sair por aí, dando pra todo mundo escondido, porque você explode de desejo por dentro e não agüenta mais viver com aquela pessoa, que se tornou uma estranha, ou até um irmão, como se costuma dizer, “um irmão”, que bosta essa de irmão, eu não quero irmão, eu quero tesão, eu quero olhar pros olhos de alguém e achar que ela é a pessoa certa e no outro dia duvidar que não é mais, eu não quero certeza alguma de nada, chega dessas certezas que não levam a nada, eu quero é olhar pras mãos de um homem e amá-las profundamente, porque eu sempre amei mãos, grandes, pesadas, como as de um amigo meu que prefiro não falar o nome, eu sempre gostei de mãos, como vou conseguir parar de olhá-las, senti-las, pegá-las, eu sei que é duro, mas a vida é dura, quem disse que amar é ser feliz mentiu, porque o amor precisa daquela pontinha de sofrimento, da ausência, de achar que se tem e não se tem, aquela angústia que a deixa a gente matutando, pensando, achando que o cara não te quer, que é preciso seduzir mais, sorrir mais, mudar a maneira de se vestir, treinar o olhar, o amor é duvidoso, quem disse que o amor é pacífico, tranqüilo, isso definitivamente, não combina comigo, tá bom, pode ser que eu nunca tenha amado, é fácil falar essas coisas né, a gente sempre acha que amar é esperar a noite chegar e dormir agarradinhos numa noite de chuva pra no outro dia acordar e começar tudo de novo, lindo não, essa idealização romântica do amor, mas e aí, já sei que eu sou inconformada, você já me falou isso tantas vezes, mas e como resolvo isso, me diz, sopra aqui no meu ouvido, eu não consigo viver tanto tempo a mesma coisa com a mesma pessoa, debaixo do mesmo teto, eu sou volúvel eu já sei, tá bom, tudo bem, eu preciso de terapia, mas será que lá eu vou encontrar a saída desse lugar que não existe, dessa relação inatingível mas que me deixa viva, eu penso como os homens? mas que nada, quem disse isso, por que você acha isso, só porque eu falo em outras pessoas, puxa, como você é careta, quer dizer que preciso me transformar numa mulher de verdade, que não sou ainda, ah, que é isso, você tá me agredindo, caralho, assim não podemos mais conversar, se você não entende, pelo menos não me julga tá bom, olha, eu sei que estou sangrando por dentro, faz tempo, isso não vai passar, essa ferida que me dói por dentro é uma coisa que ninguém vai me curar, não estou buscando o príncipe ou aquele homem lindo, com uniforme branco que vai me tirar do limbo, quem procura por isso já se perdeu e sabe que vai cair numa grande cilada, porque a vida nos dá essas coisas pra gente sentir na carne e não ficar achando que vai ficar tudo bem, que o mundo é mau e que nós é que não estamos buscando o verdadeiro caminho das essências, como, eu estou viajando na maionese, eu sei, e daí, eu faço isso o dia todo, como que não vou fazer isso diante dessa realidade opressora, eu não quero ser enlaçada, mas e aí, me dá a solução de bandeja, eu quero, me dá, você acha que devo procurar o quê, o espiritismo, a umbanda, a igreja, Freud, Marx, Dalai Lama, quem me salvará, me dá o caminho do paraíso, será que os dragões conhecem o paraíso, já leu o Caio Fernando Abreu, puxa, como não, como posso acreditar que alguém que nunca leu o Caio tenha a solução pra essas coisas, é tão fácil né, tá bom, não vamos mais discutir, temos opiniões diferentes, e você, passou bem o dia, ah, comprou um futon novo, onde, naquela loja japonesa e carézima, cê tá podendo hem, tá bom, amanhã conversamos mais, beijos amiga e tenha uma boa noite de sono (...tu-tu-tu-tu)

Por um segundo




Para Gonzaguinha

O segundo que durou o nosso olhar, foi como se toda a carne do universo tivesse se diluído nos nossos corpos. Ele entendeu e eu também, embora essa compreensão carregasse uma infinidade de pontos de interrogações e perguntas sem qualquer necessidade de resposta.
Ele sabe que além de nós há um sentido antigo, um tempo puro, uma quase eternidade que nos transpassa e nos transforma numa coisa só, como um acontecimento profundo, como a certeza da morte, como uma dor que não sara, embora tudo, traiçoeiramente, dure apenas uma fração de segundo.
Ele, na sua indecisão, sabe e nega e eu sei e vivo, com toda a força e brutalidade que a minha alma vem me abarcar, nascendo a cada dia com aquele olhar no pensamento, vivendo aqueles segundos de encantamento como se fossem algo que pra sempre tivesse desvirginado a minha essência, algo que toma meu corpo, que se entranha em minha carne e faz com que eu o adore, como uma imagem profana, como um senhor que me obriga a cultuá-lo, embora nada tenha de sagrado.
Não, não é nada piegas, não é romântico, é bruto e seco, é claro e difuso, é tudo ao mesmo tempo, sem dualidades, não se pode explicar o que por si, não se define. Ele é algo que me falta e me tem, e eu sei que estou Nele, mas que falto Nele também, que o nosso olhar se compreende até o último instante da compreensão, quando só há a escuridão e o vácuo, a sombra da dúvida e o amor, propriamente dito, ou como se tentam dizer.
Eu sei que a minha alucinação já se mistura com o real, que o nosso olhar também tem a pérfida dor da traição e do medo, mas me pego imaginando como seria a vida ao lado da serenidade disfarçada daquele homem, já envelhecido pelo tempo mas de alma infantil, e essa sensação rala rasga a minha mente fazendo com que ao mesmo tempo que eu tente em vão alcançá-la, me venha a repulsa que eu sinto por Ele e por sua imensa vaidade.
Ele sabe que eu sangro pode dentro mas vai me negar eternamente, e me evitar, e disfarçar, e dissimular, e esconder, ele é a própria dúvida, Ele se procura e não se acha, porque Ele é o que É por que É, e acha que É. No fundo, ele sabe da sua manipulação quase angelical, ele usa as suas armas o tempo inteiro e sabe que eu o adoro, como uma criança carente, como uma filha sem Pai; e esconde que também tem aquele brilho no olhar quando me vê, usufruindo do seu poder demoníaco de me possuir sem querer, de poder ocultar o que vê e sente, mesmo se assassinando por dentro.
Ele sabe que pode cortar na minha carne e me banquetear, e me vampirizar, e me azucrinar, e me sugar... No fundo Ele é misericordioso, e se poupa de tomar meu corpo dessa forma, preferindo as delícias da alma.
Mas eu sei que falto Nele e que a minha imensa falta nunca vai deixá-lo caminhar em Paz, e eu me consolo nisso e me seguro, e entrego o meu mel que Ele sorve aos poucos e depois rechaça.
E assim, dentro desse semicírculo de perdas e ganhos, de ausências e memórias, a coisa não se completa nunca, porque nasce e vive todo dia, relutando contra a certeza do fim

Samba pra Rosa

Para os que não deram certo, ( ou os que sempre andaram em círculos....)

Rosa abriu a janela do 10º andar, naquela manhã de verão, tempo bom, céu sem nuvens, ventos esparsos, , trânsito em confluência; tirou do bolso da saia o pedaço de papel puído com o sambinha que compusera na juventude, e explodiu.
Aquele samba, que um dia a fez em pensar ser uma grande compositora, aquele velho sambinha, elogiado pelos colegas da faculdade, que levou o prêmio máximo do festival da canção de inverno daquele ano, saía como um filho de dentro de suas entranhas, e estranhamente, elevava sua voz, (que sempre fora sussurada), chamando uma breve atenção de quem passava e a ouvia entrecortada pelo vento.
Ao mesmo tempo que cantava, lembrava-se de José, o homem que tanto amou, para quem dedicou sua obra máxima, cuja fotografia mofava no porta-retrato de sua cabeceira, a única foto, que por acaso, fizeram juntos após o término do festival, poucos meses antes dele sumir e ela nunca mais ter amado alguém. Logo José, que tanto lhe incentivou, que a inspirou em tudo, cujas letras eram dedicadas a ele...
Depois daquele sambinha, vieram outros até de boa qualidade, sambas canções, marchinhas, uma gama de boleros, grandes inspirações, mas a essa altura, Rosa já estava trabalhando, os colegas da faculdade se afastavam, casavam, desapareciam, procuravam outros horizontes em outras cidades, foram apagados pelo tempo e esqueceram o sambinha, - e esqueceram Rosa, que tanto fez os outros cantarem naquele já afastado ano.
Era com ele, que Rosa conseguia ser notada. Menina tímida,avessa às badalações, não se envolvia em política, nem movimento estudantil. Seu tesão era a música, mais ainda, compor.
Mais ainda, os sambinhas, despretensiosos, desses que se canta batucando numa caixinha de fósforo em roda de amigos.
Em seu íntimo, ela parecia saber que iria pertencer ao seleto clube dos que não dariam certo, dos que rodariam em círculos para chegar no mesmo ponto, dos que, apesar de otimistas, sempre ficariam de lado, na retaguarda, nos bastidores. Era uma moradora das sombras, embora procurasse a luz.
´És orgulhosa, Rosa` dizia um amigo, um dos poucos do ´ clube`, que ainda lhe frequentavam regularmente para tomar um café na mesinha da copa com a toalhinha de renda, xícaras velhas, pires trocados, coisas que ela já não ligava se estavam em ordem ou não, se combinavam ou se se misturavam.
Juntos, relembravam os velhos tempos e entoavam as músicas de Rosa na caixinha de fósforo. Momentos de esquecer a velhice que chegava sem pedir licença nem manual de sobrevivência, aterrorizando a menina Rosa, que temia que seu samba fosse esquecido de vez e não pudesse sequer ser cantado daquele 10° andar.
Naquela manhã, ensolarada, de fato, foi imensa a vontade que sentiu de mostrar o samba. Lá embaixo, a vida fluía normalmente: gente trabalhava, almoçava, crianças saíam da escola, alguns congestionamentos, um pequeno acidente de moto.
Em sua sala, porém, ela vivia algo único: seu samba tomava corpo, parecia vivo, tinha personalidade, queria irromper finalmente, como um grito sufocado, como um fantasma aprisionado, como uma sombra que quer a luz.
Incrível coincidência aquela, mas naquele ano, o sambinha faria quarenta anos, o tempo de moradia no prédio, onde ela passara cheia de esperanças pelo mesmo portão de ferro fundido, que não sofrera os efeitos do tempo e que continuava forte, protegendo Rosa do mundo exterior e que lhe tornava mais uma anônima naquela cidadela enlouquecida. Uma bela metáfora de sua vida nesses anos todos, vida privada, fortaleza particular.
Mas ao começar a cantar teve a certeza de que encontrara a felicidade, ou pelo menos, uma fração do que ela seria ou um átimo do que a diziam ser.
Queria que todos ouvissem aquele samba cadenciado, de breque, sem vergonha, cheio de influências da Rádio Nacional, de sua mãe cantando, avental sujo, agitando a colher no ar, em seus tímidos passos de dançarina frustrada, uma exímia dançarina, a mãe.
Eram momentos de felicidade igual ao que Rosa vivia agora, certamente, a felicidade sufocada pela felicidade alheia, (a da mãe), que sufocava a própria vida para a alegria dos outros. Só a menina Rosa, para entender, sentada quietinha no canto da cozinha, e perceber que aqueles momentos de fina alegria só pertenciam à mãe. Era um momento só dela o que a fez descobrir o quão particular era essa tal felicidade.
Foi quando reparou que essas coisas que se passam no interior da gente, nas nossas memórias, nos nossos risos solitários, naqueles detalhes captados pela lente dos nosso olhar, as lembranças que se eternizam, se solidificam, coisas que só acontecem na nossa cabeça (e que fica tão duro viver sem elas), essas idéias perdidas... mas sinceras, são a verdadeira felicidade.
E do alto do 10º ela andar cantou tão lindo, que ninguém percebeu.