quarta-feira, 2 de julho de 2008

O instante vivido


" Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma.Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não." (Manuel Bandeira)

No casarão, era noite. Lá fora, apenas o latido de um ou outro cachorro de rua e a visão de mais um dia que desaparecia . Dentro da casa, restava a lembrança do passado, tentando resistir ao presente, já que não se podia mais falar em futuro.

Laura acendeu um cigarro, e ficou alguns momentos olhando aqueles escritos antigos na parede da casa, pequenas rachaduras desenhadas pelas mãos invisíveis do tempo. A fumaça lhe trazia imagens que antes não compreendia e que chegavam a incomodar naquela hora pela lucidez repentina com que apareciam.

Há muito ela desistira de aprisionar o momento vivido. Vivia a fruição do instante. Tateava o aqui e agora, mesmo que estes fossem recheados de memórias da infância, risos pela casa, sermões dos pais, passos pelos corredores, e os encontros lancinantes entre os olhos dela e os de José. Ela uma menina, ele homem feito, e entre eles, uma imensa paixão que os sugava por dentro, que ambos sabiam e sentiam, e nada podiam fazer e nem mesmo ousar compreender.
As palavras indizíveis que eles trocaram e que ela sentia dançavam pelo etéreo. Tudo era tão vivo agora. Aquelas sensações, aqueles silêncios, os gritos incorpóreos de um chamando o outro, tudo era ensurdecedor de tão audível.

José a amava. Tinha certeza.

Mas ele já era um morto. E ela, embora viva, sentia-se na posição de quem apenas espera, impotente, diante do absurdo disso tudo. Esperava um dia resgatá-lo, finalmente, porém, não tinha certeza disso. E se atormentava diante da impossibilidade, do inatingível.

Quem sabe, poderiam viver o que não puderam, encontrar-se , tocar-se, na mesma idade, no mesmo instante presente. Pudera ela ultrapassar a barreira da matéria, atravessar a velocidade da luz e embrenhar-se pelos átomos que compõe os corpos até encontrá-lo, em algum ponto do universo, numa galáxia perdida, longe de tudo e de todos, agora só os dois, um encontro marcado.

O tempo era cruel, ela sabia. Mas já não lutava contra ele e conseguia entrar na sua mais obscura intimidade. Compreendia e comungava com as suas vicisssitudes e desencontros e entendia suas sincronias. Nem mesmo a impressão do vir a ser importava. O futuro lhe parecia uma mera impressão. Restava o senhor cronos como ele é, na sua crueza e terror e sua vontade de nada.

E nesse presente havia José, cada vez mais perto, que se entranhava na sua carne e atiçava seus nervos, dando-lhe aflição e medo. Uma angústia que se estendia cada vez que ela fumava um cigarro e observava a fumaça, dançando fantasmagórica na sua vista, forçando-a a refletir. Mera ilusão? Talvez.

Nessa inércia, meio ridícula e apavorante, restava a impressão daquele olhar, que a feria por dentro e que lhe perseguira por toda a vida. Da voz forte de José, chamando-lhe para brincar, dar-lhe balas e doces, dele e seu pai falando de negócios à mesa. Os dois jantando todas as noites, enquanto a mãe preparara o café. E ela, menina, saias curtas, brincando com a boneca, mas de olhos ligados para ver se ele ia embora.

Lembrava-se de seu sorriso interior ao perceber que ele ficaria mais um pouco. Eram sócios, José e seu pai e ninguém jamais imaginaria aquele amor latente, por vezes, já tão maduro e endurecido, entre uma menina e um homem, muito mais velho, separados pela distância do tempo e absolutamente juntos na justeza da alma.

Ela e José jamais se encontrariam. Falo de encontros de corpos. Um dia ele casou e mandou convites. Ela, na sua meninice, pediu pra mãe comprar vestido e sapato, como se fosse a noiva. Sabia que aquele casamento era dela, selariam o enlace no mundo invisível, muito mais real e verdadeiro.

Quando ele subiu ao altar, um arrepio tomou o seu corpo. De mãos dadas com a mãe, ela chorou quando o viu beijar a noiva. E ao cumprimentar-lhe, respirou aliviada ao encontrar novamente os seus olhos.

Afinal eles estavam nela e ela os levaria para sempre, como uma promessa. Eram os mesmos olhos que ela conhecia e que ele via como a redenção de um futuro distante e de um presente proibido.

Anos depois reencontrou-lhe, já velho e doente. A esposa era uma velhinha simpática, que sorriu quando a viu e lembrou-se dela com carinho, quando menina. Ele envergonhou-se ao vê-la assim tão velho, mas seus olhos não conseguiram esconder o que sentiu. E além do tempo, eles tinham agora a barreira da carne, a dela tão fresca....

No entanto, ela o amou mais ainda ao saber que tudo estava perdido. Enquanto ele viveu radiante, seu último instante de vida.

Morreu uma semana depois.

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