domingo, 30 de dezembro de 2012



Vestido de festa

Para dona Rita, colecionadora e exímia estilista de roupas para bonecas

Loren, Margot, Marjorie, eram quase- pessoas na visão de dona Cidinha, que acabara de costurar mais uma peça para uma de suas quase 150 bonecas. Todas, impecavelmente vestidas, frequentadoras dos mais lindos bailes imaginários dos sonhos, coisas de menina antiga, criada por trás da máquina de costura da mãe e na sombra das vizinhas carpideiras, que solicitavam roupas brancas para chorar seus defuntos confeccionadas naquela senhora Singer preta, austera, de pedais rebuscados cheirando a mofo e ao mesmo tempo, com ares de vida eterna.

A mãe  era uma boa costureira sem dúvida, mas nunca levou o ofício a sério. Sua principal atividade era mesmo a de controlar as bebedeiras do marido, boêmio inveterado, avesso à vida doméstica e pai ausente. Frequentemente, assistia  a mãe  ser vítima das provocações desse que escolheu para ser pai dos seus quatro filhos, quando ele dizia que não havia nascido para criar família, que tudo era culpa "dela", que "agora que quis, que aguentasse". Enquanto ela, a mãe, permanecia ali, caladinha, na sua lividez de menina, apenas pensando em mais uma roupa pra lavar, comida por fazer ou na sua melhor fantasia: costurar, secretamente, as roupinhas para sua coleção de damas da noite.  

Mergulhada nesse universo particular das bobinas, agulhas e aviamentos, a rotina da mãe incluia ainda ver frequentemente o marido entrar em casa com um terno manchado de batom o que, em vez de provocar sua ira, a afastava mais ainda daquele delito conjugal fazendo-a mergulhar mais fundo em sua fantasia. Ali estavam elas: Gracie, Gretha, Brenda, todas representando o seu melhor papel, o sonho de mulher fina que nunca pode desempenhar por conta de uma infância pobre. Quem disse que ser pobre significa não ter fineza?  Dona Cidinha sempre viu na mãe uma diva. Uma autêntica conhecedora dos gestos mais nobres e das roupas mais elegantes da sua época.

 Não sabia de onde saía aquele conhecimento se nem dinheiro para comprar os últimos números da revista Manequim ela tinha. Às vezes suspeitava que essa vocação vinha de vidas passadas, embora, católica convicta, não assumisse em público esse tipo de desconfiança. 

Um dia ocorreu o inesperado. A mãe, ainda jovem, sofreu um infarto, daqueles fulminantes, sem haver tempo para socorro imediato ainda mais naqueles tempos bicudos onde ambulância era quase luxo no vilarejo onde moravam.  Morreu ali mesmo, sem choro nem vela, caindo por cima daquela que foi a sua fiel companheira durante esse tempo de vida: a velha máquina Singer. Como a primogênita, Cidinha foi obrigada a tomar as primeiras providências: comprar o caixão, fazer o enterro da mãe, acalmar os irmãos e, ainda – que horror – providenciar o vestido do velório. Mamãe era fina, não podia ser enterrada de qualquer modo. 

Lembrou que a chave do seu armário, aquele que ela não deixava ninguém chegar perto e onde deveriam estar suas melhores roupas, vivia dentro de um velho prato de cristal, que só ela sabia onde estava sem que a mãe percebesse. Ao achar a chave mágica, correu para o tal armário, intimamente, vivenciando uma ponta de felicidade por finalmente saber o que se escondia ali.

Foi quando tomou o choque: ali estavam elas, as 150 preciosidades, todas bem vestidas com cetins, véus,  plumas, sedas e brilho, muito brilho.  Um contraste com a filha mais velha que dispunha apenas de duas bonecas puídas, que dividia com a irmã. Do alto de seus 12 anos, Cidinha não sabia se procurava o vestido para a mãe ou se pegava tudo para si, para só brincar, finalmente, realizar o seu sonho sem ninguém para interferir. Como a mãe escondeu tanto tempo aquele tesouro?

Teve um mistura de raiva e pena e quase desistiu de procurar o vestido elegante para a mãe, optando por sepultá-la com aquele mesmo, que ela usava na diária. Egoisticamente, foi pegando uma a uma todas as bonecas, quase em transe-  enquanto a mãe jazia, rígida, em cima da máquina -  acomodando-as em uma caixa de papelão embaixo de sua cama. A irmã não podia saber. Ninguém, ninguém podia saber. Era segredo dela e a da mãe, que já não podia mais falar. 

Depois de guardar aquelas jóias cuidadosamente, lembrou de buscar o vestido para a mãe, encontrando apenas um: o que ela havia feito com esmero para o batizado do filho mais novo, o queridinho do pai, que ganhou festa e pompa nesse dia para prejuízo dos mais velhos. Ali estava ele, amarelado, cheio de rendas, caprichosamente passado e ensacado o  ´único que seu pai dispensou dinheiro com tecido e acessórios para a "esposa não fazer feio na festa". Cínico, o pai.

Este, ao entrar de surpresa e saber da morte da esposa, deu meia volta ainda na sala pegando o menino menor, e nunca mais voltou. Cidinha cuidou de tudo e ali mesmo se despediu da infância- embora, não soubesse exatamente do que isso se tratava. Tinha, agora, uma imensa responsabilidade para tocar assumindo o papel da mãe. Virou costureira famosa. Foi contratada pelos nomes da alta costura  nacional  e fez uma pequena fortuna. Marido não quis. Preferiu dispensar todos os seus cuidados à família e às suas  pequenas amigas, guardiãs daquele segredo: Greta, Brenda, Loren.... eram quase-pessoas para ela.