quarta-feira, 2 de julho de 2008

Samba pra Rosa

Para os que não deram certo, ( ou os que sempre andaram em círculos....)

Rosa abriu a janela do 10º andar, naquela manhã de verão, tempo bom, céu sem nuvens, ventos esparsos, , trânsito em confluência; tirou do bolso da saia o pedaço de papel puído com o sambinha que compusera na juventude, e explodiu.
Aquele samba, que um dia a fez em pensar ser uma grande compositora, aquele velho sambinha, elogiado pelos colegas da faculdade, que levou o prêmio máximo do festival da canção de inverno daquele ano, saía como um filho de dentro de suas entranhas, e estranhamente, elevava sua voz, (que sempre fora sussurada), chamando uma breve atenção de quem passava e a ouvia entrecortada pelo vento.
Ao mesmo tempo que cantava, lembrava-se de José, o homem que tanto amou, para quem dedicou sua obra máxima, cuja fotografia mofava no porta-retrato de sua cabeceira, a única foto, que por acaso, fizeram juntos após o término do festival, poucos meses antes dele sumir e ela nunca mais ter amado alguém. Logo José, que tanto lhe incentivou, que a inspirou em tudo, cujas letras eram dedicadas a ele...
Depois daquele sambinha, vieram outros até de boa qualidade, sambas canções, marchinhas, uma gama de boleros, grandes inspirações, mas a essa altura, Rosa já estava trabalhando, os colegas da faculdade se afastavam, casavam, desapareciam, procuravam outros horizontes em outras cidades, foram apagados pelo tempo e esqueceram o sambinha, - e esqueceram Rosa, que tanto fez os outros cantarem naquele já afastado ano.
Era com ele, que Rosa conseguia ser notada. Menina tímida,avessa às badalações, não se envolvia em política, nem movimento estudantil. Seu tesão era a música, mais ainda, compor.
Mais ainda, os sambinhas, despretensiosos, desses que se canta batucando numa caixinha de fósforo em roda de amigos.
Em seu íntimo, ela parecia saber que iria pertencer ao seleto clube dos que não dariam certo, dos que rodariam em círculos para chegar no mesmo ponto, dos que, apesar de otimistas, sempre ficariam de lado, na retaguarda, nos bastidores. Era uma moradora das sombras, embora procurasse a luz.
´És orgulhosa, Rosa` dizia um amigo, um dos poucos do ´ clube`, que ainda lhe frequentavam regularmente para tomar um café na mesinha da copa com a toalhinha de renda, xícaras velhas, pires trocados, coisas que ela já não ligava se estavam em ordem ou não, se combinavam ou se se misturavam.
Juntos, relembravam os velhos tempos e entoavam as músicas de Rosa na caixinha de fósforo. Momentos de esquecer a velhice que chegava sem pedir licença nem manual de sobrevivência, aterrorizando a menina Rosa, que temia que seu samba fosse esquecido de vez e não pudesse sequer ser cantado daquele 10° andar.
Naquela manhã, ensolarada, de fato, foi imensa a vontade que sentiu de mostrar o samba. Lá embaixo, a vida fluía normalmente: gente trabalhava, almoçava, crianças saíam da escola, alguns congestionamentos, um pequeno acidente de moto.
Em sua sala, porém, ela vivia algo único: seu samba tomava corpo, parecia vivo, tinha personalidade, queria irromper finalmente, como um grito sufocado, como um fantasma aprisionado, como uma sombra que quer a luz.
Incrível coincidência aquela, mas naquele ano, o sambinha faria quarenta anos, o tempo de moradia no prédio, onde ela passara cheia de esperanças pelo mesmo portão de ferro fundido, que não sofrera os efeitos do tempo e que continuava forte, protegendo Rosa do mundo exterior e que lhe tornava mais uma anônima naquela cidadela enlouquecida. Uma bela metáfora de sua vida nesses anos todos, vida privada, fortaleza particular.
Mas ao começar a cantar teve a certeza de que encontrara a felicidade, ou pelo menos, uma fração do que ela seria ou um átimo do que a diziam ser.
Queria que todos ouvissem aquele samba cadenciado, de breque, sem vergonha, cheio de influências da Rádio Nacional, de sua mãe cantando, avental sujo, agitando a colher no ar, em seus tímidos passos de dançarina frustrada, uma exímia dançarina, a mãe.
Eram momentos de felicidade igual ao que Rosa vivia agora, certamente, a felicidade sufocada pela felicidade alheia, (a da mãe), que sufocava a própria vida para a alegria dos outros. Só a menina Rosa, para entender, sentada quietinha no canto da cozinha, e perceber que aqueles momentos de fina alegria só pertenciam à mãe. Era um momento só dela o que a fez descobrir o quão particular era essa tal felicidade.
Foi quando reparou que essas coisas que se passam no interior da gente, nas nossas memórias, nos nossos risos solitários, naqueles detalhes captados pela lente dos nosso olhar, as lembranças que se eternizam, se solidificam, coisas que só acontecem na nossa cabeça (e que fica tão duro viver sem elas), essas idéias perdidas... mas sinceras, são a verdadeira felicidade.
E do alto do 10º ela andar cantou tão lindo, que ninguém percebeu.

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